Untitled #2

O cheiro a enxofre tornava a respiração quase impossível. Era um ar pesado, carregado de gases que vinham das fornalhas que ele via pelas grades da passadeira. Pelas janelas não se via qualquer luz que indicasse se era de dia ou de noite e as fornalhas tinham de servir de lanternas. Queimou-se quando pousou a mão no corrimão de metal e mesmo através dos sapatos sentia o calor do metal da passadeira.

Estava numa espécie de ponte, num edifício com ar industrial e com aspecto de não ser feita qualquer manutenção há anos. Ainda assim tudo funcionava, as gruas, as tubagens, e uma serie de máquinas que não se percebia ao certo para o que serviam.

E faltava qualquer coisa. Sentia que estava num vácuo qualquer, como se “lá fora” o mundo se regesse por regras diferentes. Era uma ideia ridícula e sem lógica que ele optou por ignorar.

Caminhou pela passadeira de metal até chegar ao outro lado, onde estava uma autêntica casa, desligada daquele ambiente de indústria e enxofre e onde pela porta entre-aberta viu passa um homem.

Entrou e imediatamente ficou para trás o ar pesado. Em vez disso respirava-se sem esforço e sem ter de lutar contra odores e gases químicos.

O estranho no interior sorriu de imediato e soltou um “Olá, prazer em conhecer-te!” cheio de energia e a mostrar que estava à espera dele. Seguiu-se um momento de estranheza. Aquele estranho, de fato e com um ar bem disposto e aprumado reconheceu-o e esperava também ser reconhecido. Apertou-lhe a mão,ficou à espera, aguardou que caísse o ar de espanto e confusão e ainda a sorrir desistiu dizendo “Eu espero que adivinhes o meu nome.”

Dirigiu-o para uma mesa e sentaram-se os dois frente a frente. E aquele estranho, sempre com um ar afável, explicou que estava à espera dele e que estava na hora de decidirem o seu futuro. Dos dois. Enquanto aquele homem falava ele não se conseguia sentir de todo confortável. Sentia-se guiado para aquela sala, concordava, sentia que era certo o que ele dizia e uma sensação estranha no estômago dizia-lhe que tudo isto era suposto ser assim.

“Fica em jogo o seguinte: vences um jogo e decides tu, perdes e decido eu.”

“Decido o quê?”

“Decides. É sempre assim, vocês chegam aqui e mal se lembram do nome, mas sabem que é assim que tem de ser. Qual é a ultima coisa de que te lembras?”

“Estava na trincheira, íamos fazer uma investida às linhas inimigas apoiados pelos reforços que tinham chegado.”

“Pois muito bem, é a mesma guerra, mas são batalhas diferentes meu caro.”

Inclinou-se para alcançar um caixa de madeira de onde tirou peças de xadrez que começou a distribuir pelo tabuleiro desenhado na mesa. “Começa” disse ele a sorrir. Acendeu um cigarro e cruzou as pernas enquanto se reclinava na cadeira.

Respirou fundo e olhou para o tabuleiro. Endireitou-se mais na cadeira e ficou a observar o adversário a tentar adivinhar-lhe a estratégia. Nada. Naquele fato tudo ficava por dizer sobre a personalidade do homem, nem os botões de punho de um estranho azul escuro davam qualquer pista sobre como iria agir e reagir.

Cavalo para f3. Em segundos o adversário respondeu, peão para d5. Continuaram, d4 e6, g3 c5, Bispo para g2 e cavalo para c6.

Foi ele quem parou para respirar, verdadeiramente assustado com a velocidade com que as jogadas estavam a ser feitas. Fechou os olhos e tentou desenhar as próximas jogadas para decidir.

“Uma abertura catalã, é, digamos, interessante da tua parte. Pessoalmente eu teria escolhido uma abordagem diferente, mais dinâmica, mais arrojada! Reflexo do teu medo, talvez.”

Abriu os olhos e fitou o adversário que continuava a fumar o cigarro e se mostrava pouco preocupado com o jogo. Houve qualquer coisa ali que despoletou uma pista. O tom de voz, a forma como agia e como o discurso mudou. Havia ali um certo desprezo por ele, como se estivesse a jogar contra alguém inferior.

Acalmou.

Era preciso fazer algo para perceber melhor o adversário. Fez roque na ala do rei e teve como resposta cavalo para f6.

“Tu estás aqui há muito tempo.”

“Estou.”

“E sabes quem eu sou.”

“Sei e sei de onde vens. Conheço as tuas aventuras e desventuras, os pequenos mistérios que te rodeiam e que nem tu compreendes. Eu estava lá quando optaste pelo exército em vez de uma carreira de gestão.”

c4, peão negro toma a casa c4.

Pela primeira vez sorriu. “As tuas jogadas são desprovidas de emoção, são lógicas e frias. São um bocadinho como tu. Apesar do tom de voz, das roupas e da atitude, estás cheio de desprezo por mim e pelo que eu represento. E acreditas que vais ganhar … “

Por mais seguro que estivesse das palavras, sabia que nada daquilo se ia traduzir obrigatoriamente numa vitória. Já o seu adversário não pareceu de todo abalado. Respondeu-lhe que sim, num tom do mais natural possível. Descreveu-lhe tudo o que já viu e viveu, contou-lhe histórias de um espaço e de um tempo diferente, relatou as suas vitórias face a inimigos muito mais capazes do que ele.

“E meu caro, aqui não será diferente.”

“Aqui as regras são diferentes.”

“Onde pensas que é aqui?”

Esta pergunta fê-lo parar. Era a trigésima jogada. Peão para h4, Rainha para c8.

“Como assim?”

“Estás parado meu caro. Totalmente parado. No espaço, no tempo, estás em suspenso face ao oscilar de toda a energia do universo. Aqui, tu e eu somos iguais. E sim, eu sei, estou a contar-te coisas a mais, não é? A tua memória vai voltar eventualmente, por isso não importa. Mais tarde, mais cedo, é tudo igual para mim.”

Ficou em silêncio percebendo ao que se arriscava com as palavras que deram inicio ao jogo a repetir-se baixinho. “vences um jogo e decides tu, perdes e decido eu”.

O jogo continuou e à trigésima quarta jogada o panorama começou a mudar lentamente. Rainha para g4, cheque. Rei para f8; rainha para c8, rei para g7. As jogadas sucederam-se a uma velocidade cada vez maior, com o adversário a mostrar ansiedade pela primeira vez.

Apagou o cigarro. Rainha para c7, cheque novamente. O rei regressa a f8.

Sentia finalmente que tinha controlo sobre o adversário mas estava consciente de que ainda assim tudo estava por um fio. Mais do que tudo era preciso enraivecer o adversário. As situações de cheque foram-se somando. Bispo para f5, cheque. Rei b8, Rainha d8 cheque! O rei estava em clara fuga, a rainha branca faz novo cheque em d7 e é tomada.

“A memória ainda me falha, mas começo a entender-te. Bispo toma rainha em d7.”

Com um olhar de fúria, o adversário incomodado pela duração e falta de controlo que estava a ter do jogo, colocou o rei negro em c7 e levantou-se para olhar o tabuleiro.

Calmamente, viu o bispo branco ser posicionado em b5 e ficou em silêncio, estranhamente calmo a analisar desta nova perspectiva todo o tabuleiro.

Com um rugir de furia derrubou a mesa e segurou-o pelo colarinho, até os pés não tocarem o chão e o atirar contra uma parede. Ainda se estava a levantar quando sentiu uma mão a agarrá-lo pelo pescoço e as unhas a cravar-se na pele, não respirava, não conseguia falar.

“Ganhas desta vez, decide, já!”

Pousou-o novamente no chão e entre folegos atropelados e tosse ouviu-o dizer baixinho “quero voltar”. Ficaram de pé frente a frente, a dois dedos de distância um do outro. Atirou-o novamente com violência contra a parede.

E tudo se desfez. Todas as sombras e luzes das fornalhas de enxofre, a visão da fábrica e daquele campo de batalha estranho desapareceram e ele perdeu toda a noção de onde estava. Sentiu-se perdido no espaço e a luz branca feria-lhe os olhos. Perdeu os sentidos.

Acordou mais tarde. A ouvir vozes ao longe e música que não reconhecia. Primeiro via vultos e sombras, e lentamente os olhos foram-se habituando à luz. Estava numa sala branca e estéril, havia mais duas camas perto da sua, devidamente separadas por biombos. Em frente viu finalmente a origem do som. Era uma placa de vidro e plástico, viam-se pessoas vestidas de forma estranha a falar que a certa altura eram interrompidas por música.

Respirou fundo e ficou em silêncio a tentar perceber tudo aquilo. A música mudou e ele começa a prestar mais atenção à letra.

Pleased to meet you
Hope you guess my name
But what’s puzzling you
Is the nature of my game

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