The Untitled Series

Um recomeço

Passaram-se poucos dias desde que tinha acordado naquele lugar estranho, um hospital como nunca tinha visto ou imaginado. Tinha a mente em branco, sem qualquer recordação ou memória.

A dor de acordar sem memórias, sem passado ou um futuro para imaginar, é demasiado grande para uma pessoa só. Mas lembrou-se aos poucos da vida que tinha, e essa dor cresceu exponencialmente a cada dia e a cada nova recordação.

Tinha perdido tudo.

Num momento era 1943 e estava embrenhado na segunda grande guerra, no outro, numa fábrica de contornos dantescos a jogar xadrez com uma figura anacrónica.

Tinha ganho, é certo, mas acordou 70 anos depois como se fosse apenas o dia seguinte. Continuava com a mesma idade que tinha em 1943 e recordava as pessoas que amava como se tivesse estado com elas no dia anterior. Ganhou um jogo e perdeu tudo o resto.

E todo este mundo era tão estranho que por segurança mentiu. Disse aos médicos que não se lembrava de nada quando na verdade já se lembrava de tudo. Só assim podia explicar as reações a uma cultura e a uma forma de estar que não era de todo a sua.

Aos seus olhos, tudo à sua volta tudo se processava de forma estranha. Um dos pacientes com quem partilhava o quarto, passava o tempo a tocar numa placa de vidro que por vezes usava para comunicar como se fosse um telefone. Ria-se e frustrava-se a olhar para aquele aparelho, quase saltava da cama quando ele emitia sons e ligava-o constantemente à corrente para o manter a funcionar. “Aposto que Pavlov teria adorado ver isto” pensou ele.

Mas não eram só estas coisas que o espantavam. As luzes eram de uma florescência diferente, o tecido era de um algodão luxuoso por comparação ao que conhecia. Até o metal era diferente. As cadeiras de rodas e as mesas eram de ligas metálicas mais leves e resistentes.

Uma semana depois de ter acordado um dos médicos finalmente foi ter com ele, sentou-se ao lado da cama e confessou.

— Já tentámos tudo, já procurámos e a verdade é que não conseguimos des…
— Doutor, antes, está na hora de eu apanhar sol. Podemos falar lá fora?

Levantou-se a custo, apoiado numa bengala e seguiram para o jardim do hospital. O médico aproveitou e acendeu um cigarro.

— Doutor, essas coisas fazem-lhe mal.
— Rapaz, com o que tenho para dizer acho que se justifica. Procurámos os seus registos por todo o lado, verificámos com o hospital de onde, pensávamos nós, viesse transferido e a verdade é que nada bate certo. Temos o ficheiro clinico de um homem que teria 90 anos, com uma foto que está tão danificada que é inútil. Verificámos impressões digitais, registos dentários, nada. Estou desolado, mas não conseguimos descobrir mais nada, reuni-lo com sua família. Algures por aí há gente que o procura e sente a sua falta, tenho a certeza.

Esperava uma reação mais emocional mas a resposta foi racional e até de compaixão.

— Não se preocupe com isso doutor. São coisas que acontecem.
— Eu tinha esperança de que a esta altura já tivesse recuperado parte da memória. Que o tivéssemos encontrado em algum registo de pessoas desaparecidas. A única explicação que temos é que na transferência se trocaram os registos e … mais do que isto não imagino. — Eu sei que fizeram tudo, agora tenho é de olhar para o futuro, não é?
— É sim mas … não entendo, está a lidar com isto melhor do que eu.

Fez-se um silêncio estranho que nada interrompia.

— Doutor. Vamos imaginar que eu até me recordava de tudo. Das pessoas, dos cheiros, das histórias e do quanto estava rodeado de coisas boas. Vamos imaginar por instantes. Não seria terrível? Acordar num dia e ver que tinha perdido tudo. Que tudo o que tinha construído, que tudo o que eu prezava se tinha esfumado, sido obliterado por uma qualquer ocorrência que eu desconhecia, ou que conhecendo não percebia. Doutor, diga-me lá como iria o mundo da psicologia ou de toda a medicina possível sarar uma ferida destas ? Talvez seja melhor eu não me lembrar não é? Não saber e defender a sanidade mental.

Entre olhares e espanto o médico respirou duas vezes antes de responder. Estava na dúvida se estava a ouvir uma confissão ou se era uma perspectiva positiva de uma tragédia.

— Há pessoas que passaram por isso e vivem as suas vidas.

— Vivem mesmo? Não estão presas pelo passado?

— Sim, vivem. Umas melhor que outras é certo. Numa opinião mais pessoal, acredito que é preciso um intelecto bastante forte, uma força de vontade maior do que o normal para superar algumas tragédias com o mínimo de mazelas. Ainda assim, em toda a fé que tenho em Deus, não vejo nos seus olhos uma tragédia.

Continuaram à conversa, sobre a força e o passado, sobre obstáculos e tudo o mais. Ficou acordado que dali para a frente muita coisa teria de mudar. Ele já se começava a movimentar sozinho e teria de ganhar rotinas. Em breve poderia ter alta, mas sem sítio para onde ir teriam de procurar uma solução. Aquele homem não tinha qualquer formação, não poderia ser mecânico ou canalizador. Falou-se de uma associação onde ele poderia trabalhar a tempo inteiro como voluntário. Em troca de uma cama e comida, até conseguir encontrar um emprego estável.

Teria também de se registar junto do Governo, da segurança social. Teria de ter um nome.

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